Em janeiro de 2022 foi publicado na revista The Lancet Neurology o estudo Segurança, Eficácia e Tolerabilidade da Memantina nos Desfechos Cognitivo e Adaptativo ​​em Adolescentes e Adultos Jovens com Síndrome de Down: Um Estudo de Fase 2, Randomizado, Duplo-cego e Controlado por Placebo

A síndrome de Down é causada pela presença de um cromossomo 21 a mais nas células e, por isso, também é conhecida por trissomia do cromossomo 21. Essa condição genética causa deficiência intelectual e uma maior prevalência de alterações neurodegenerativas. 

O estudo publicado na The Lancet Neurology foi financiado pela Alana Foundation e resultou de uma colaboração entre dois centros de pesquisa: um em Cleveland, nos EUA, coordenado pelo médico Alberto Costa, que também é o pesquisador principal, e outro no Brasil, no Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) em São Paulo, que foi coordenado por mim. 

A memantina é uma medicação lançada para o tratamento da doença de Alzheimer no início dos anos 2000 e aprovada em todo o mundo. Aqui no Brasil ela é, inclusive, padronizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Ela pode modular os efeitos alterados do neurotransmissor glutamato envolvido no processamento, armazenamento e recuperação de informações, com potencial para melhorar a atenção, a memória, a linguagem e facilitar a realização de tarefas simples. 

Há mais de uma década a memantina tem sido estudada em modelos animais de síndrome de Down em estudos pré-clínicos, tendo o médico Alberto Costa como um dos principais pesquisadores nessa área. Existe um camundongo criado em laboratório, o Ts65Dn, que tem a trissomia do cromossomo 16. O cromossomo 16 dos camundongos tem muitos dos genes do cromossomo 21 humano e, com isso, o Ts65Dn é um dos modelos mais utilizados para estudar determinadas condições de saúde na síndrome de Down, inclusive as questões cognitivas. 

Estudos pré-clínicos são extremamente importantes, mas é necessário saber se os resultados se reproduzem nos seres humanos. É aí que entram os estudos clínicos, aqueles idealizados e planejados para estudar os efeitos nas pessoas. 

Em 2012 o médico Alberto Costa e equipe publicaram um estudo piloto utilizando a memantina em pessoas com síndrome de Down. Foi um estudo pequeno, de fase 1, com 40 participantes e boa metodologia, que demonstrou uma melhora significativa em uma das medidas de memória. E muito importante: a memantina se mostrou segura, com poucos e leves efeitos adversos. 

Considerando os resultados dos estudos nos modelos animais e o resultado desse primeiro estudo clínico, foi planejada a realização de um estudo maior, de fase 2, para avaliar se a memantina era realmente segura e se tinha eficácia em algumas questões cognitivas nas pessoas com síndrome de Down. O desenho do estudo foi o mesmo do estudo anterior: randomizado (a intervenção – que era a administração da memantina – foi feita aleatoriamente, sem interferência externa); duplo-cego (nem os pesquisadores e suas equipes e nem os participantes e suas famílias sabiam em qual grupo o participante estava, se no que recebeu a memantina ou no que recebeu o placebo); e controlado por placebo (o grupo controle recebeu cápsulas idênticas às da memantina, mas com material inerte dentro). 

Os participantes foram recrutados em São Paulo e em Cleveland. Foram randomizados 160 pacientes e 149 finalizaram o estudo: 73 do grupo memantina e 76 do grupo placebo. Todos com síndrome de Down e com idades que variaram entre 15 e 32 anos. 

O estudo teve a duração de 16 semanas e foi construído para avaliar a segurança e a eficácia da memantina em algumas funções cognitivas, primariamente a memória. Para avaliar a segurança foram analisados parâmetros clínicos e laboratoriais e para avaliar a eficácia foi utilizada uma bateria de testes neuropsicológicos e um questionário de funcionalidade que avaliava muitas das funções adaptativas e de autonomia do dia a dia. Ao final do estudo também foi coletada uma amostra de sangue para medir a concentração da memantina. 

O efeito da memantina foi medido por meio da comparação das respostas aos testes neuropsicológicos aplicados no início e ao final das 16 semanas de administração da medicação. O desfecho principal foi uma medida de memória verbal analisada por um teste chamado CVLT-II-sf, que avalia a memorização de nove palavras. Além do California Verbal Learning Test (CVLT), havia outros oito testes neuropsicológicos que mediam memória de dígitos, linguagem e reconhecimento de figuras, por exemplo. 

Infelizmente os resultados não foram favoráveis para a utilização da memantina. Embora essa medicação tenha se mostrado bastante segura (tivemos efeitos adversos infrequentes e leves), não foi observada melhora significativa no grupo memantina em comparação com o grupo placebo no desfecho primário, que era aquele teste que avaliava a memória (CVLT-II-sf p=0·6078) e em nenhum dos outros testes. 

A conclusão foi que a memantina na dose habitual de 20 mg por dia é uma droga segura, mas que não teve impacto na melhora de funções cognitivas de adolescentes e adultos jovens com síndrome de Down

Porém, houve uma surpresa quando analisados os níveis sanguíneos de memantina no grupo de estudo. A maioria dos participantes tinha um nível sanguíneo baixo, menor do que aquele que foi considerado eficaz nos estudos iniciais para tratar a doença de Alzheimer, e que foram considerados necessários para se ter uma boa ação da medicação (0,5 a 1 micromol/litro). A média encontrada foi de 0,37 micromol/litro 

O questionamento feito foi: será que o resultado não foi favorável porque os participantes não tinham um nível de memantina no sangue considerado eficaz? Para dirimir essa dúvida foram separados os 23 participantes que tinham nível sérico maior ou igual a 0,4 micromol/litro e comparados com os respectivos controles do grupo placebo. Nessa comparação foram obtidos resultados significativos para o desfecho primário (CVLT) e também em outro teste que mede a memória de dígitos. Nesses dois testes a diferença foi significativa e mostrou que a memantina era eficaz quando o nível dela no sangue era, pelo menos, próximo do nível terapêutico já conhecido. 

Esse resultado nos levou a pensar na possibilidade de que pessoas com síndrome de Down possam ter alguma diferença na metabolização da memantina e que talvez, hipoteticamente, o uso de doses maiores possa levar a um nível sérico maior e, consequentemente, chegar aos resultados desejados de melhora cognitiva. 

Resta agora planejar e realizar novos estudos para conhecermos melhor a farmacocinética da memantina nas pessoas com síndrome de Down e eventualmente chegarmos aos resultados favoráveis desejados, trazendo melhor qualidade de vida para essa população. 

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